Por um enfoque econômico, social e cultural
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O reconhecimento da internet como “meio de comunicação vital para possibilitar às pessoas o exercício de seu direito à liberdade de expressão ou do direito de buscar, receber e difundir informações e ideias de todo tipo, acima de qualquer fronteira”, como garantem os artigos 19 da Declaração Universal de Direitos Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, foi estabelecido expressamente pela primeira vez no relató- rio de julho de 2011 de Frank la Rue, Relator Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU (CDH) para a promoção e proteção do direito de liberdade de opinião e expressão. Além disso, ele considera que:
O direito à liberdade de opinião e expressão é um direito fundamental em si mesmo, ao mesmo tempo que é fator coadjuvante de outros direitos, entre eles os econômicos, sociais e culturais, como o direito à educação e a participar na vida cultural e gozar dos benefícios do progresso científico e de suas aplicações, assim como os direitos civis e políticos, como os direitos à liberdade de associação e reunião.
Desse modo, ao funcionar como catalizador do direito pessoal à liberdade de opinião e de expressão, a internet também facilita o exercício de outros direitos humanos diversos i .
Em meados de 2012, ficou claro que outros Relatores Especiais das Nações Unidas estavam levando muito a sério o tema dos direitos humanos e internet – inclusive o Relator Especial sobre o direito à liberdade de reunião pacífica e de associação ii ; o de direitos culturais iii ; violência contra as mulheres; e racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância iv . No dia 5 de julho de 2012, 85 países assinaram a resolução do CDH, liderados pela Suécia, afirmando o simples fato de que os mesmos direitos existentes na sociedade devem ser assegurados no espaço virtual v . A partir desta medida chave de 2012, a cada dois anos o CDH analisa uma resolução relativa à internet – desde o reconhecimento básico da aplicabilidade dos direitos humanos no ambiente virtual à abordagem de temas críticos, como a busca de soluções para a desigualdade digital de gênero, os ataques às pessoas por exercerem seus direitos na internet e o fim das interrupções intencionais de acesso à rede. A resolução de julho de 2016 relaciona os direitos humanos na rede ao cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável vi . Portanto, parece que mais governos estão se comprometendo seriamente em concretizar as liberdades na internet, utilizando o discurso de direitos humanos e seus mecanismos para alcançá-la. Isso fica mais evidente no lançamento da Freedom Online Coalition de governos, em dezembro de 2011 vii , e de uma maior participação e aceitação dos direitos humanos como um tema legítimo a tratar no Fórum de Governança da Internet (FGI) viii .
Ambivalência
Mas qual a profundidade real do compromisso dos governos? Os grupos da sociedade civil desconfiam particularmente, quando, graças às revelações de Snowden, membros da Freedom Online Coalition, como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, aparecem como violadores dos direitos à privacidade. Três anos mais tarde, a situação ainda parece bastante desalentadora. O bloqueio e a filtragem de conteúdos ix são comuns: em alguns países a prática é endêmica x. O governo russo aprovou em 2013 uma lei que lhe permite bloquear seletivamente conteúdos que considerar nocivos para as crianças. Os ativistas de direitos humanos consideram que a lei de proteção infantil foi desenhada como “uma fissura que possibilita uma censura mais ampla na internet”. Em meados de 2013, o governo britânico introduziu o uso obrigatório de filtros de pornografia infantil. Muitos países em desenvolvimento, particularmente da África, Ásia e do Oriente Médio, também praticam ativamente a censura on-line xi. Até os governos em geral comprometidos com a liberdade de expressão estão tomando iniciativas para limitá-la na internet, a exemplo da decisão do Equador de junho de 2013 de estabelecer uma “política de nome real” que proíbe a opinião anônima na internet xii. E as interrupções de acesso à internet estão se tornando frequentes na África e em parte da Ásia, especialmente durante as eleições ou protestos políticos xiii.
Polarização Norte-Sul
Muitos governos dos países em desenvolvimento continuam sendo ambivalentes. xiv Resistem a apoiar ativamente as liberdades na internet porque: a) preocupam-se com a “segurança” e a ameaça do cibercrime e do “terrorismo”; b) consideram que o crescimento e desenvolvimento econômico são mais importantes; c) não veem (ou não lhes convencem os argumentos a favor) a relação entre os direitos humanos e o desenvolvimento; e d) veem a agenda de liberdades na internet como parte das políticas exteriores e de livre comércio conduzidas pelos EUA como “líder do mundo livre”, ao mesmo tempo que isso ajuda as empresas norte-americanas a acessar novos mercados e fazer negócios sem pagar impostos nem participar com investimentos estrangeitos diretos xv. A cultura política também contribui para os países responderem de formas diferentes à internet. Alguns governos, principalmente na África, desconfiam da internet e de seu impacto nos valores tradicionais, na cultura e na identidade. Alguns simplesmente sufocam a liberdade de expressão e associação como um meio de controle e retenção de poder. Isto é mais evidente nos países com instituições estatais frágeis e altos níveis de corrupção. Os funcionários do Estado e os políticos temem as consequências da capacidade de expressão e participação dos cidadãos na esfera pública.
Lacunas na pesquisa, análise, discurso, defesa e criação de redes
Estas respostas ambivalentes e polarizadas às políticas e à regulação da internet podem ser atribuídas, ao menos em parte, a desigualdades na pesquisa, no conhecimento e no discurso em matéria de direitos humanos e de políticas de internet. São as seguintes:
A) Desigualdade no enquadramento:
Supõese que todos os direitos humanos – inclusive os civis, políticos e econômicos, sociais e culturais – são “inseparáveis”. No entanto, praticamente todo o enquadramento no discurso da liberdade da internet se fez a partir da perspectiva dos direitos civis e políticos xvi.
B) Desigualdade na participação:
A grande maioria dos participantes no discurso da “liberdade da internet” provém de países desenvolvidos. Poucos têm experiência ou conhecimentos em teoria, políticas ou práticas de desenvolvimento.
C) Desigualdade conceitual:
A internet é descrita frequentemente como onipresente e integrada à vida social, política e econômica contemporânea. Mas não existe uma conceituação coerente da internet a partir da perspectiva de como o direito, a política e a regulação deveriam tratá-la. Muitos governos querem um maior controle sobre a internet, enquanto as empresas, a comunidade técnica e a sociedade civil tendem a resistir a isto, ainda que nem sempre pelas mesmas razões.
D) Desigualdade na pesquisa:
A internet foi muito pouco estudada através do prisma dos direitos econômicos, sociais e culturais, o que difere do enfoque dos “TIC para o desenvolvimento” (tecnologias de informação e comunicação). Inclusive dentro da perspectiva dos direitos civis e políticos, a pesquisa existente é fortemente orientada a uma estreita gama de direitos civis (liberdade de expressão, privacidade e liberdade de associação).
E) Desigualdade de princípios:
A maioria das declarações de princípios para as políticas, a regulação e a governança da internet estão centradas na privacidade, na liberdade de expressão e associação e na proteção contra a censura xvii. Não sabemos de nenhum conjunto coerente de princípios criado para considerar efetivamente os direitos econômicos, sociais e culturais.
F) Desigualdade em ativismo e redes:
as organizações de direitos humanos do Sul Global focadas no desenvolvimento raras vezes estão centradas nos direitos relacionados à internet. O resultado é uma lacuna no que diz respeito a como os grupos de direitos humanos definem a relação entre a internet e os direitos econômicos, sociais e culturais, e como estes se relacionam com o desenvolvimento.
As implicações são claras: se quisermos ampliar o discurso sobre o enfoque da governança da internet baseada em direitos, devemos fazê-lo para incluir todos os direitos, inclusive os econômicos, sociais e culturais. De outra forma, serão reforçadas as divisões geopolíticas que conduziram à criação de dois instrumentos de direitos, separados desde sua origem – quando um único instrumento teria sido muito mais fácil de implementar e monitorar. Além disso, impactaria negativamente a criação de espaços de configuração e definição de políticas como o Fórum de Governança da Internet.
References
i La Rue, F. (2011). Relatório do Relator Especial sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e de expressão (A/HRC/17/27). http://www.un.org/ga/search/view_doc. asp?symbol=A/HRC/17/27&referer=https://www. google.com/&Lang=S
ii APC. (2012, 28 junho). Internet: APC sees progress in the full recognition of the freedom of association and assembly. APCNews. https://www. apc.org/en/node/14676
iii Shaheed, F. (2012). Report of the Special Rapporteur in the field of cultural rights, Farida Shaheed (A/HRC/20/26). https://daccess-ods.un.org/ TMP/5280131.69765472.html
iv Ruteere, M. (2012). Report of the Special Rapporteur on contemporary forms of racism, racial discrimination, xenophobia and related intolerance, Mutuma Ruteere (A/HRC/20/33). www.ohchr.org/ Documents/Issues/Racism/A.HRC.20.33_en.pdf
v APC. (2012, 6 Julio). The UN recognises freedom of expression on the internet as a human right. APCNews. https://www.apc.org/en/node/14772
vi APC. (2016). APC welcomes Human Rights Council resolution on the internet and human rights. https://www.apc.org/en/pubs/apc-welcomes-human-rights-council-resolutio…
vii A coalizão teve sua sexta reunião em Costa Rica em outubro de 2016. Para mais informações ver: https://www.freedomonlinecoalition.com
viii intgovforum.org
ix Para mais informações sobre esta prática, ver: https://opennet.net/about-filtering
x La Rue, F. (2011). Op. cit.
xi O relatório de Freedom House’s Freedom on the Net 2012 considera “livres” apenas dois dos seis paí- ses de África subsaariana. Ver www.freedomhouse. org/sites/default/files/resources/FOTN%202012%20 Summary%20of%20Findings.pdf
xii APC. (2012, 15 agosto). New regulation threatens anonymity on the internet in Ecuador. APCNews. https://www.apc.org/en/node/14993
xiii Vernon, M. (2016, 6 June). Pushing Back Against Internet Shutdowns. CIPESA. cipesa.org/2016/06/ pushing-back-against-internet-shutdowns and Endalk. (2016, 11 octubre). Ethiopian Authorities Shut Down Mobile Internet and Major Social Media Sites. Global Voices. https://advox.globalvoices.org/2016/10/12/ ethiopian-authorities-shut-down-mobile-internetand-major-social-media-sites
xiv Ver, por exemplo, o relatório da Oficina de Alto Comissariado de Direitos Humanos, Resumo do Painel de Especialistas do Conselhos de Direitos Humanos em liberdade de expressão e internet, Genebra, 2012
xv Isto se reflete na atenção voltada à segurança cibernética na Comissão da União Africana e na União Internacional de Telecomunicações, um fórum no qual os países em desenvolvimento são em geral participantes ativos, assim como nas negociações relacionadas à revisão do Regulamento Internacional de Telecomunicações na Conferência Mundial sobre Telecomunicações Internacionais em dezembro de 2012.
xvi 16 Hawtin, D. (2011). Internet charters and principles: trends and insights. In Finlay, A. (Ed.), Global Information Society Watch 2011: Internet rights and democratisation. APC e Hivos. https://giswatch. org/mapping-democracy/internet-rights/internetcharters-and-principles-trends-and-insights-0
xvii 17 Hawtin, D. (2011). Op. cit. Ver como exemplo o Charter de Direitos e Princípios da Internet da coalizão dinâmica de direitos e princípios da internet (2011): internetrightsandprinciples.org/site; a Carta de Direitos na Internet da APC (2006): https://www. apc.org/en/node/5677; e o Bill of Privacy Rights (2010) da Electronic Frontiers Foundation: https://www.eff.org/deeplinks/2010/05/bill-privacy-rightssocial-network…